Em mergulho nas Ilhas Cagarras, no Rio de Janeiro, a oceanógrafa considera que a humanidade ainda tem tempo de reverter o quadro de destruição nos oceanos; ((o))eco acompanhou o mergulho.
A reportagem é de Paulina Chamorro e Luciana Candisani, publicada por ((o))eco, 27-07-2023.
A visita da oceanógrafa, heroína do planeta pela revista Time e exploradora da National Geographic, pela quarta vez ao Brasil, por si só já é um evento. Mas a vinda de Sylvia Earle desta vez tinha mais um componente importante: realizar o primeiro mergulho em águas brasileiras para conhecer o universo subaquático e rico das Ilhas Cagarras e águas do entorno. Organizada pelo projeto Ilhas do Rio, que fez a proposta para que a área marinha fosse reconhecida como Hope Spot, a saída ocorreu na última segunda-feira (27) e teve como tripulantes pesquisadores do projeto, mergulhadores, a equipe do ICMBio Cagarras, e pouca imprensa.
Saímos da Marina da Glória, às 8h30 da manhã, com destino ao arquipélago composto por um conjunto de três ilhas grandes e duas ilhotas, distantes (e vistas) a apenas 5 km da praia de Ipanema – e que formam o Monumento Natural (Mona) das Ilhas Cagarras. Este conjunto abriga uma biodiversidade marinha impressionante: corredor migratório de baleia, ninhal de aves marinhas, refúgio de espécies endêmicas e área de reprodução de espécies comerciais de pesca.
São requisitos que tornaram a área reconhecida como um Hope Spot em 2021 – ou Ponto de Esperança, em tradução livre –, o segundo do Brasil, depois de Abrolhos, e mais um dos 156 pontos que existem pelo mundo. Estas áreas, que apresentam características importantes de possibilidades de recuperação, por isso de esperança, fazem parte do projeto idealizado pela Mission Blue, entidade fundada pela Dra. Sylvia Earle para criar pelo mundo áreas que possam dar um “respiro para a natureza” e, assim, se regenerar.
Mesmo estando tão próximo da costa, em frente a uma grande cidade brasileira, as potências e os impactos que acontecem abaixo da linha d’água ainda são pouco conhecidos da sociedade. “As pessoas não imaginam a cidade submersa que existe aqui. Cheia de conexões naturais”, diz Sylvia.
Passamos primeiro pelo “Corredor das Baleias”, um lugar monitorado pela bióloga Liliane Lodi e que a cada ano aumenta o registro de avistagens de jubartes que estão no seu caminho de reprodução. Avistamos duas delas no trajeto.
Baleia franca e seu filhote, no Rio. (Foto: Luciano Candisani | ((o))eco)
Sylvia Earle estava ansiosa. Com mais de 7.500 horas de mergulho, e prestes a completar 88 anos, ver a vitalidade e curiosidade mantida foi inspirador. Quando chegamos em uma área mais abrigada da Ilha Comprida, vestiu rapidamente sua roupa de mergulho e, junto com os pesquisadores do projeto Ilhas do Rio, caiu na água. Após pouco mais de 30 minutos, esperamos as impressões da maior referência em conservação marinha do planeta.
Para quem revelou para o mundo a maravilha e importância da vida marinha para cada um de nós, Dra. Sylvia também acompanhou a rápida degradação dos mares. Mas ainda assim, vê momentos importantes de recuperação e mobilização. Nesta entrevista, concedida a bordo logo após o mergulho, ela falou da importância de conservar áreas marinhas, sobre mudanças climáticas, economia azul e claro, sobre como manter a esperança.
Como os Hope Spots podem ajudar a manter a saúde do oceano? E especialmente o segundo Ponto de Esperança no Brasil, as Ilhas Cagarras e o mar do entorno?
Os Hope Spots partem de uma área que não está em perfeitas condições, mas com cuidado podem se transformar em um lugar melhor. É emocionante ver que quando se deixa de degradar uma área, quando se passa a protegê-la, isso demonstra que você se importa com ela. As diferenças são incríveis e isso é uma consequência. Nós também podemos partir protegendo lugares que estão em ótimas condições e mantê-los assim. Precisamos fazer isso em todo o mundo, na terra e no mar. Com florestas antigas, fazer de tudo o que for possível para não perdê-las e conservá-las, porque não podemos reconstruir isso depois de destruído. Vamos dar uma pausa para a natureza. O importante é que os elementos ainda estejam lá.
Como eu posso ver aqui [nas Ilhas Cagarras]. Temos todos os elementos. Claro, não é tão completo quanto poderia ter sido há 500 anos ou há mil anos, ou qualquer momento antes dos seres humanos começarem a extrair da forma que acontece hoje. Quero dizer, que a extração de peixes, a poluição, esta combinação realmente impacta o oceano. Não apenas aqui, mas em todos os lugares. Mas onde existe uma ação, onde dizemos "Ok, vamos realmente abraçar e proteger este lugar e dar a ele um tempo”, deixar a natureza fazer o seu trabalho, isso ocorre e o que vemos aqui no Rio é motivo de esperança.
Realmente é e está acontecendo bem aqui na sombra desta linda e grande cidade. E a maioria das pessoas não sabe que existe outra cidade embaixo d’água, com uma complexidade de criaturas que estão cuidando de sua própria vida. Aqui estamos nós, em terra, ou cuidando de nossos próprios negócios que é estar vivo, fazendo o que é preciso para prosperar e sobreviver.
É emocionante ver as conexões sendo feitas e as pessoas estão se tornando mais conscientes do que está acontecendo aqui embaixo da superfície, no oceano.
Esta é a quarta vez que Sylvia Earle visita o Brasil. (Foto: Luciano Candisani | ((o))eco)
Acabamos de ver algo que é realmente simbólico, uma baleia franca com um filhote. Ou seja, a presença de grandes baleias aqui mostra que há caminhos protegidos. No entanto, não vimos predadores topo de cadeia no nosso mergulho. Talvez por que precisamos de mais tempo para que as populações se recuperem?
Quando eu era criança, ainda se matavam baleias. Muitas, milhares de baleias. Nem mesmo se respeitavam elas como seres vivos. Quantas toneladas de carne, óleo e ossos foram extraídos? Novamente, a questão não era quantas baleias, indivíduos. Era quantas toneladas extraímos. Estamos fazendo isso ainda com peixes e talvez não vamos mudar isso também porque é a vida.
Mas é emocionante ver economistas olhando para as baleias e dizendo que há uma conexão relacionada ao clima. Qual é o valor do carbono das baleias? Se você pegasse todas as baleias vivas, o que elas valem? Quanto valem? Colocar mesmo um valor econômico, que é outra forma de olhar a questão: um trilhão de dólares em carbono com baleias vivas versus o carbono emitido se você as matar.
Matando baleias, o carbono vai para atmosfera e contribuiria para as mudanças climáticas e ainda tiraríamos do oceano elementos importantes que conduzem os ciclos de vida. Os nutrientes que as baleias geram alimentam o poderoso fitoplâncton, que por sua vez captura o dióxido de carbono e o transforma em alimento. Também libera oxigênio na atmosfera e no oceano e é assim que ao longo de centenas de milhões de anos o planeta se tornou habitável. Até este momento. Nós precisamos que essas cadeias alimentares prosperem por longos períodos de tempo para desenvolver um planeta que funcione a nosso favor e com a atmosfera com oxigênio suficiente para sustentar a vida como a conhecemos. Mas o que estamos fazendo agora é desmatar florestas tropicais, mudando a química do oceano, eliminando a vida. Podemos perceber uma trajetória na direção errada. O clima está mudando. O planeta está aquecendo, a química foi alterada no ar e no oceano. Os oceanos estão mais ácidos agora do que quando eu era criança.
Mas voltando ao seu ponto, em 1986 existiu uma moratória no mundo para parar de matar baleias, e está funcionando. As populações estão se recuperando. Baleias vivem tanto quanto os humanos, elas começam a se reproduzir na adolescência, mais ou menos como humanos, e tem um filhote por vez. Às vezes, raramente, dois, como os humanos, ocasionalmente eles têm gêmeos, mas você sabe, leva muito tempo para eles se recuperarem. Imagine se tivéssemos eliminado população humana reduzida a apenas uma pequena população. Quanto tempo demoraríamos para nos recuperar?
Ilhas Cagarras, o segundo Hope Spot reconhecido no país. (Foto: Luciano Candisani | ((o))eco)
Mas as baleias estão se recuperando e foi lindo ver duas espécies delas [uma jubarte e outra franca] dentro da área do Hope Spot hoje.
As baleias estavam desaparecendo quando eu era criança. Eu comecei a pesquisá-las em 1970 e eram populações bem menores, ainda as matavam. Não todas, mas muitas estavam sendo mortas. Agora estamos na mesma trajetória de exploração com os tubarões, que restam apenas 10%. Com o atum também e é a mesma coisa, em todo o mundo. A população deles também era bem maior quando era criança e agora temos uma importante redução. Mas podemos mudar isso também, basta parar de matar e aumentar as áreas onde os deixamos prosperar.
Podemos ver o ponto de virada na direção certa. Metade dos recifes de coral, os manguezais – mas estes são um pouco diferentes –, mas temos hoje cerca de metade destes importantes ecossistemas. E, na maioria das vezes, a maioria das pessoas não tem conhecimento disso.
No ambiente terrestre, primeiro vemos os declínios das florestas tropicais, mas ainda assim podemos medir o tamanho do impacto, podemos ver o que está acontecendo e agir para reverter, para proteger e conservar e restaurar ambientes. No oceano isso está escondido da visão de todos.
Mas talvez não mais.
Quero dizer o seguinte: hoje saímos ao mar e fomos testemunhas. Vimos o que pode ser feito. Conhecemos os problemas, mas também sabemos que há soluções. É a melhor chance que já tivemos. Nunca tivemos a exata ideia dos problemas que temos e o que podemos fazer para mudar. Estou honrada de estar aqui e ser uma testemunha da boa nova. E para celebrar, temos que fazer com que mais pessoas entendam.
Quero dizer que estou feliz por ter nascido em uma época que pude estar entre os primeiros a testemunhar a natureza da vida no mar e ver a mudança com o declínio das espécies. Mas espero estar aqui tempo suficiente para ver isso mudar. E acho que estou, pois começo a ver a recuperação para um oceano mais saudável, melhor para a economia, para a saúde, para a segurança da vida, melhor para a nossa existência.
Sylvia Earle em seu “habitat natural”. (Foto: Luciano Candisani | ((o))eco)
E quanto do oceano precisamos proteger para manter esses importantes serviços que ele nos fornece?
Agora estamos protegendo cerca de apenas 3%, ou seja, 97% do oceano está aberto para exploração. E exploração principalmente para capturar espécies da fauna. De uma forma ou de outra, mesmo em pequenas quantidades, do mesmo modo como acontecia com as baleias que eram capturadas em quantidades industriais, isto segue com os peixes. Isto é algo que não pode continuar.
Podemos dizer que em pouco tempo não teremos mais peixes, assim como ocorreu com as baleias. Mas agora podemos ver e medir o impacto. E saber que quando paramos e damos uma folga à natureza, damos um tempo para recuperação das baleias, do atum, damos um respiro aos recifes para uma maior recuperação, ela se recupera.
É possível, então por que não fazer isso? Você sabe que a meta agora é 30% a terra e o mar totalmente protegidos, portanto temos que respeitar a natureza que nos mantém vivos, mantém a economia, a saúde, segurança, tudo.
Não podemos explorar tudo e ainda esperar que isso funcione. Portanto, 30% até 2030 é bom, mas não podemos simplesmente destruir os 70% restantes. Temos que fazer as pazes com a natureza por inteiro. Encontrar nosso lugar dentro dos ecossistemas, respeitar uns aos outros, é claro, mas respeitar a natureza
Estamos explorando muito. Estamos explorando numa escala que não é sustentável, mas podemos mudar, podemos comer deliciosamente, de forma saudável e abundante, mas temos que mudar. A forma como nós tiramos a vida do oceano é um desperdício terrível. Temos que mudar a forma como cultivamos a terra porque é terrivelmente desperdiçador. Estamos tomando muito do planeta, mas nós sabemos o que fazer. Podemos ser muito mais eficientes.
Foto: Luciano Candisani | ((o))eco
Por que agora estamos explorando a vida selvagem como lucro, como serviço? Existem ainda populações tradicionais que extraem só para se alimentar e não só para vender ou lucrar…
Quando você cruza a linha, quando pega a vida selvagem e a usa para ganhar dinheiro. As aves selvagens que foram apanhadas em pequenas quantidades porque as pessoas realmente precisavam para comer, isso não era um problema. O problema ocorreu quando começamos a extrair comercialmente.
Pense nos elefantes, quando eles são caçados por seu marfim, ou nos tubarões, levados por suas barbatanas, em toneladas! Quero dizer, estamos falando milhões de toneladas. Nós passamos dos limites.
Agora que podemos ver isso, medir os impactos e entender as consequências que voltam para nós, não deveríamos ter problemas em mudar nossos hábitos. Por que eu pensaria em matar um tubarão? Os tubarões são muito importantes vivos, como as baleias são realmente importantes vivas.
Então, para finalizar, eu digo a vocês, parabéns por manterem e aproveitarem as oportunidades que estão disponíveis para nós como nunca antes tivemos. Este é o momento, nunca mais haverá outra chance com esta. Então celebre estar vivo. O que é melhor do que ser e se sentir uma criança no século 21?